O silêncio como refúgio, a música como companheira.

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Lundum


Quando eu estava fazendo pesquisas de repertório para a gravação do nosso CD, pensei em incluir um compositor que ainda não fosse tão conhecido e que poderia se tornar uma promessa da música florianopolitana.

Em conversa com o compositor Neno Miranda, que eu conhecia do convívio familiar e da Udesc, perguntei se ele teria alguma composição adequada para um arranjo que pudesse ser cantado por nosso coral. Neno logo me falou de sua composição "Lundum", que já havia cantado nos bares de São Paulo e da Ilha. De início, vi a oportunidade de homenagear as raízes africanas em nossa cultura.

Neno trouxe-me uma gravação caseira de uma dessas apresentações e disse que eu poderia me "divertir" ao fazer o arranjo: "Ah, eu canto assim desse jeito, tu fazes o que tu quiseres!" Eu metido que só, inverti um trecho, dei uma mexida no compasso da "feijoada", para ficar mais temperada e propus uns ritornellos que “esticariam” a música. O compositor, felizmente, aprovou a fórmula.

Em seguida era a vez de criar as demais linhas vocais. A música pintava uma paisagem em minha mente que retratava a opressão de um povo que só tinha voz quando cantava; o seu trabalho desumano; a sua ânsia por liberdade e a alegria, que por fim, seria conquistada.

Imaginei, então, a orquestração de uma fuga por uma parte dos escravos, começando com alguns negros insinuando que seria um bom momento para realizá-la, já que estava havendo um “Lundum no banguê da Sinhá” (dança híbrida brasileira na casa de engenho de sua dona), onde uma nega (Fulô) exibia essa coreografia lasciva. Eles se animam com a ideia, enquanto outros cortam a cana (e servem de pano de fundo para a fuga). Vislumbram, então, a chegada em um quilombo e a grande festa que seria feita. Vangloriam-se de sua comida e de suas habilidades físicas, como que tomando coragem para o grande feito.

Uma curiosidade é o fato de eu ter criado um contracanto masculino incluindo o orixá feminino “Obá” (após a interjeição oba!), que eu se quer conhecia ou ouvira falar. Ainda me espanta o fato de eu ter sido “levado” a colocá-la no arranjo e, em seguida, tomar conhecimento que se trata do orixá feminino associado às lutas e que Obá é sincretizada com Santa Catarina. É considerada mais forte que muitos orixás masculinos (além de representar as águas revoltas dos rios, representa o aspecto físico masculino nas mulheres).

O arranjo instrumental, apenas percussivo, faria referência a alguns instrumentos característicos da música africana. Meu maior pesar foi não ter conseguido o padrão rítmico do grupo Olodum no refrão “Na mesa do Senhor não tem Feijoada...” (com a sonoridade característica de seus tambores, surdos e caixas), em função do tempo e dinheiro que tínhamos disponíveis quando da gravação. Já para o final, conseguimos realizar mais uma das imagens que a música me remetia: trazer uma bateria de escola de samba, um grande legado dos negros no carnaval brasileiro, para a festa que os negros fariam ao chegar no Quilombo.

Lundum retrata a esperança que se torna tão necessária nos momentos mais difíceis pelos quais passamos e que atenua nossos maiores pesadelos. É uma exaltação a um povo desrespeitado que só era ouvido quando cantava. Uma forma de sonhar com a volta de sua liberdade e sua alegria.