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Retrato de Anita em miniatura por Gaetano Gallino (1845) |
Aninha herdara do pai o gosto pelos cavalos e, desde tenra idade, demonstrou que estava determinada a tomar as rédeas do seu destino. Com personalidade forte, “plena de indômitos”, como escreveu Ivo D’Aquino[2], que foi membro do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina, não se intimidava diante de eventual importunação, insurgia-se, impunha-se com a energia própria dos destemidos.
A jovem não ignorava a situação político-econômica do governo monárquico-regencial, com pesada carga tributária e críticas à administração dos recursos imperiais. Seu tio Antônio, por simpatizar com o movimento farroupilha, que havia culminado com a proclamação da República Piratini, no estado vizinho, em 1837, teve sua casa, em Lages, incendiada.[3]
Em 1839, o movimento dos farrapos transborda para Laguna, já que o porto da pequena vila permitiria expandir a revolução a outras províncias. Em 22 de julho, Giuseppe Garibaldi toma Laguna, no comando do Seival, depois da epopeia náutica iniciada em Camaquã, que envolveu o transporte inusitado de dois lanchões sobre carretas puxadas por juntas de bois, ao longo de cem quilômetros[4].
“O povo foi para as ruas e os sinos da igreja repicaram quando os farrapos entraram em Laguna”[5]. Teria Ana Maria festejado a boa-nova? De certeza, sabemos que, passados os dias de euforia, depara-se com Giuseppe Garibaldi, e ouve dele a frase que permaneceria na memória do herói como uma sentença inexorável, que só a morte poderia romper: “tu devi essere mia!”
Ao ser chamada carinhosamente de Anita, não poderia imaginar que esse encontro fulminante transubstanciaria sua experiência, selaria um compromisso de amor e também de lutas pelos ideais republicanos e por justiça social.
Dois meses depois do arrebatamento, a decidida mulher demove Garibaldi da relutância em levá-la consigo. Na noite de 20 de outubro de 1839, sobe na escuna Rio Pardo, levando consigo apenas alguns pertencentes pessoais.
Não tardou para ser colocada à prova. Em 4 de novembro, durante combate em Imbituba, um balaço de canhão a fez tombar no convés. Dois marinheiros ao seu lado padeceram. Anita, ensanguentada demonstrou excepcional bravura. Causou admiração em todos, para orgulho de Garibaldi, que, “agradecido à providência divina”, registrou, em suas memórias, a coragem ímpar de sua amada, [6].
“Digna da admiração universal”, o tesouro de Giuseppe, “não menos fervorosa do que [ele] pela sacrossanta causa do povo”, encarava com bom humor as vicissitudes das batalhas. Grávida, comandou o transporte de munições entre a retaguarda e as posições avançadas na batalha de Curitibanos. Feita prisioneira, escapou corajosamente, em noite tenebrosa, como relatou o Comandante dos Imperiais [7].
Emboscadas e círculos de fogo crepitantes não foram suficientes para detê-la. Depois de marcha ininterrupta por alguns dias, sem comer nem beber, despistou o “maior caçador dos farrapos”, em Mostardas. Com seu recém-nascido Menotti nos braços, monta o cavalo, em fuga. A guerra estava perdida, a imagem, eternizada no Gianícolo em Roma.[8].
Em Montevidéu, “Garibaldi fez Anita sua esposa em 26 de março de 1842”, na Igreja de São Bernardino[9]. É lá que nossa heroína se revela ao mundo como mãe dedicada e onde nasceram três de seus filhos, Rosa, Teresa e Ricciotti.
A rua com nome do padroeiro dos pescadores, São Pedro, abrigou a família[10]. No Uruguai, a católica Anita[11] exerceu o ofício de costureira que aprendeu com a mãe, para uma modesta freguesia[12]. A propósito, Santa Catarina de Alexandria, é a protetora das costureiras e do Estado de Santa Catarina.
Anita floresceu em plena Guerra Civil do Uruguai. “Modesta e boa criatura”, sua maior ocupação consistia em divertir os filhos – ela era toda amores para sua família.[13] Lá, também, a “esplêndida amazona” despertava a admiração de todos, “cavalgando ao lado do marido, enquanto a banda italiana tocava sua marcha de regresso” depois de ter cumprido os deveres do dia[14].
“Incorporada como enfermeira da Legião Italiana”, passou a cuidar de numerosos feridos na Batalha de Santo Antônio del Salto[15] - "anjo providencial"[16] que já havia se revelado nos combates do planalto catarinense. Dessa vez, ocupava-se como lenitivo para aplacar o luto devastador da morte prematura de sua filha Rosita, com apenas dois anos de idade, às vésperas do Natal de 1845[17].
Foi mãe pela quarta vez, no dia 24 de fevereiro de 1847, quando nasceu Riccioti Garibaldi. Dez meses depois, Anita embarca com os filhos para a Itália, que fervilhava com o movimento chamado “risorgimento”, em missão de “sondagem diplomática”.[18]
Em Gênova, sua chegada foi celebrada “de modo extraordinário”, quando “mais de três mil pessoas vieram gritar em frente à casa” onde se instalara[19]. O mesmo ocorreu, dias depois, em Nice, terra natal de seu marido.
Anita estava ao lado de Garibaldi, em 1848, quando ele reuniu um corpo de voluntários para libertar a Itália do domínio austríaco, e juntou-se à luta pela unificação de seu país[20].
Em sua última primavera, ela organizou o hospital para os legionários em Rieti[21]. Para o grande biógrafo da heroína, Wolfgang Ludwig Rau, seu temperamento decidido e intelecto inato “a capacitavam para acompanhar condignamente os altos voos de um homem invulgar” [22].
Ainda em abril de 1849, Anita galopou por Rieti, no que seria, para Rau, “um oportuno preparo físico” para a Grande Retirada. Volta à Nice para junto de seus filhos – por pouco tempo, já que então recente República Romana, que havia afastado o Papa do governo, precisava ser defendida por Garibaldi – “a luta se converteu em uma das passagens épicas do “Risorgimento”[23].
A heroína, ao saber do ataque francês ao Gianícolo, foi ao encontro de seu marido, e o surpreendeu em 27 de junho[24], na Porta de San Pancrácio: estava ali a sua Anita, “um soldado a mais”[25]. Porém, na luta final, “não havia um lugar onde pôr os pés, a não ser sobre o corpo dos mortos e feridos”[26] - o destino de Roma estava selado.
Anita, vestida como amazona, e montada em um belo cavalo zaino, marchou com Giuseppe na “retirada” para os Apeninos[27]. Despistaram os inimigos com estratégias que até hoje são estudadas nas academias militares – “como nos pampas da Farroupilha, a cavalaria seria a arma mais ativa”[28].
Tropas inimigas, divisões austríacas de milhares de homens, continuaram no encalço dos nossos heróis[29]. Companheiros deserdaram a caminho de San Marino. A retaguarda da cavalaria foi massacrada! Anita, exausta, grávida e febril, tentava comandar os soldados.[30]
Ao chegar na menor e mais antiga república, a saúde da heroína era crítica, e o refúgio, inseguro. As condições impostas eram inaceitáveis! Anita, como em Laguna, “forte de espírito”, demove Garibaldi de deixá-la para trás, a salvo.[31]
A caça do exército austríaco não deu trégua. Nem mesmo a Lua foi companheira, pois revelou a posição dos legionários esgotados durante a fuga. Até com água pelo peito, Garibaldi carrega a heroica mulher, em seu tormento atroz”[32], que, mesmo destruída pela febre, sob sol escaldante[33], mantinha seu espírito indômito[34].
Antes de chegar a Mandriole, Anita ainda esboçou um sorriso feliz, ao saber que o destino poderia reservar segurança ao marido[35]. Inexplicavelmente, reuniu forças para contar à dona da casa algumas de suas peripécias e que iria ser mãe novamente. À luz de velas, fez um prece silenciosa[36].
Depois de extenuantes horas, a caminho do abrigo seguro (Fattoria), Anita já sem cor, sem forças para ficar em pé, com um fio de voz, pediu água. Garibaldi, zeloso, tirou a espuma no canto de sua boca. Ao chegar no destino, um médico constatou a gravidade da situação. Com dificuldade, a conduziram para o andar superior da edificação[37].
Ainda na escada, Anita teve um leve espasmo. Ao acomodá-la no leito, Garibaldi percebeu, incrédulo, que o coração de seu mais precioso soldado já não pulsava mais. Descansava, enfim, às dezenove horas e quarenta e cinco minutos, do dia 4 de agosto de 1849, sua doce, brava e amada companheira, a nossa heroína...[38]
O corpo de Anita foi enterrado, pronta e descuidadamente, em uma cova rasa, a uns 800 metros da Fattoria. Havia o "pavor de um eventual contágio, e o temor de uma eminente surpresa austríaca". Os despojos foram encontrados por uma menina pastoreira e, então, sepultados no cemitério da igreja de Mandriole, em 11 de agosto.
O capítulo final da obra de seu biógrafo Rau é dedicado aos "sete enterros" da heroína. Seus restos mortais foram enviados para Bolonha, Livorno, Gênova, Nice - terra natal de seu herói - onde descansou por 72 anos. Novamente exumados em 1931, foram levados de Nice à Gênova.
"Em apoteose nacional, foram, finalmente, depositados em Roma, em 2 de junho de 1932, aos pés do impressionante monumento equestre da heroína, no monte Gianicolo, o qual fora palco das lutas republicanas de 1849."
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Retrato de Anita por Gerolamo Induno (1849) |
[1]
RAU, Wolfgang Ludwig. Anita Garibaldi: o
perfil de uma heroína brasileira. Florianópolis, Edeme, 1975, p. 72.
[2]
D’AQUINO, Ivo. Anita Garibaldi. Rio,
1949. In Rau, Wolfgang Ludwig. Anita Garibaldi: o perfil de uma heroína
brasileira. IHGSC, 2019, p. 94.
[3]
MARKUN, Paulo. Anita Garibaldi: uma
heroína brasileira. São Paulo, Senac, 1999, p. 71.
[4]
DE CAMAQUÃ À LAGUNA. Os 180 anos da
homérica travessia do Seival. Gazeta Centro-Sul. Acesso em 25 jul. 2021.
[5]
MARKUN, op. cit., p. 129.
[6] RAU, op. cit., p. 133.
[7] MARKUN, op. cit., p. 163, 170, 171.
[8] MARKUN, op. cit., p. 178.
[9] RAU, op. cit., 236.
[10] MARKUN, op. cit., p.200-203.
[11] RAU, op. cit., p. 361-362.
[12] RAU, op. cit., p. 228.
[13] RAU, op. cit., p. 364.
[14] MARKUN, op. ct., p. 236.
[15] MARKUN, op. cit., p. 233.
[16] DUMAS, Alexandre. Giuseppe Garibaldi. Ed.
Barbudânia, p. 97.
[17] RAU, op. cit., p. 273-278.
[18] RAU. op. cit.,’ p. 359.
[19] RAU, op. cit., p. 287-290.
[20] MARKU, op. cit., p. 252-274.
[21] MARKUN, op. cit., p. 280.
[22] RAU, op. cit., p. 361-362.
[23]
SILVA, Roberto Aguilar M. S. Os
Carbonários. Disponível em https://issuu.com/irmaosdoreaa/docs/os_carbonarios.
Acesso em 7 ago. 2021.
[24]
RAU, op. cit. P. 381.
[25]
MARKUN, op. cit. 301-302.
[26] PARIS, John. The Lion of Caprera,
p. 105. nota 4, in MARKUN, op. cit. 308.
[27] RAU, op. cit., p. 390.
[28] MARKUN, op. cit., p. 318.
[29] MARKUN, op. cit., p. 324.
[30] MARKUN, op. cit., p. 325-329
[31] RAU, op. cit., p. 418-425.
[32] RAU, op. cit., p. 432.
[33] RAU, op. Cit., p.465.
[34] MARKUN, op. cit., p. 339.
[35] RAU, op. 453-456
[36] MARKUN, op. cit., p. 340.
[37] MARKUN, op. cit. p. 342-344.
[38] RAU, op. cit., p. 468-469.